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Tecnologia e diversidade racial: como funciona esse mercado de trabalho?

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9 minutos de leitura

O racismo é um problema estrutural, institucionalizado e um dos mecanismos que sustenta as elites em espaço de poder. No mercado de trabalho, a colocação profissional é o tema mais urgente para a população negra segundo a pesquisa Consciência entre Urgências: Pautas e Potências da População Negra no Brasil, divulgada pelo Google Brasil. Nesse sentido, a diversidade racial e o empreendedorismo negro precisa ser um tema mais abordado nos departamento de Recursos Humanos. Para isso, existem diversos projetos em prol de diminuir essa desigualdade de oportunidades.

Para falar sobre o tema, convidamos a Fabrícia Garcia, consultora de projetos de Diversidade e Inclusão na Share RH. Sua trajetória na área da Gestão da Tecnologia da Informação, ativista no fomento e inclusão de meninas e mulheres negras na tecnologia, e sua experiência como mãe, lhe trouxeram novas percepções sobre a realidade brasileira. Ela nos fala sobre como seu caminho profissional, a importância do empreendedorismo negro e como incluir mais pessoas negras na área da tecnologia.

webinar diversidade racial

Gostaria que você nos contasse um pouco sua trajetória até se tornar consultora de projetos de diversidade e inclusão.

Foi uma longa caminhada. Comecei a faculdade de Ciências da Computação e um cenário que engloba muito de quem eu sou: uma mulher negra do Brasil. Lembro que minha conclusão foi em 2013/14, quando já tinha 30 anos. Durante esse período trabalhei com tecnologia e gestão de projetos, em especial na área da educação.

Após o término da faculdade, casei, engravidei e começaram minhas dores. Logo que minha filha nasceu, três meses depois que eu retomei a licença maternidade, eu fui demitida. Uma situação de muitas violências. Eu era gerente de projetos e quando eu voltei eu era analista administrativo. Eu não tinha mais a minha posição nem meus projetos. Mais do que isso, comecei a amamentar. Nessa época minha posição migrou para São Paulo, saía de Campinas às 5:30 para chegar às 8:00 da manhã em São Paulo, voltava entre 8:30 e 9:00 da noite. E não havia um espaço para lactação, não existia esse espaço na empresa. Às vezes eu ordenhava no banheiro para aliviar a mama e muitas vezes eu voltei pra casa com os seios túrgidos, abarrotados de leite e sentindo dores.

O curioso que nessa época também havia um escritório em Campinas, e houve toda uma complicação com meus gestores para me mudar para Campinas. Pelo menos até conseguir chegar no processo de adaptação da amamentação. Essas conversas foram ignorada ou diminuídas. No fim das contas, eu acredito que esse era mais um esforço para forçar uma demissão, a empresa não me queria e meus chefes não me queriam lá. Tanto que quando cumpriu o prazo determinado pelo sindicato, então eu fui demitida.

A partir daí passei por todo aquele processo de sentir culpa pela maternidade e entender qual era o cenário e porque essas coisas acontecem até hoje, seja com mulheres brancas ou pretas, esses abusos ainda acontecem no mercado corporativo. Comecei a me associar a grupos que falavam sobre maternidade e entendi que não era só eu, tinha mais gente compartilhando minhas dores.

Ainda era um lugar onde não me sentia amplamente representada. Porque são espaços muito brancos, por assim dizer, e pensando na realidade da mulher negra no Brasil, ela é ainda quem sustenta a pirâmide social, recebe os menores salários, têm os empregos menos desejados e sequer tem um emprego. Ainda é um caminho de pedras para as mulheres negras.

Como foi essa mudança de perspectiva em relação ao mercado de trabalho?

Estive no início de 2019 em um evento pensado para mulheres e lá estava uma pessoa que foi uma mudança de chaves. Ela relatou todos esses cenários que eu questionava, mas que eu não entendia porque acontecia. A partir daquele momento minha visão foi ampliada e eu já estava em um movimento de fomentar a ascensão da mulher negra no empreendedorismo, assim como vi que o mercado de tecnologia tinha mudado muito nos últimos 3 anos que estive longe.

Fiz tentativas de entrar nesse mercado e recebia perguntas do tipo “o que você vai fazer com seu filho?”. Essas perguntas que ainda são feitas para mulheres mães. E provavelmente [essas mulheres] serão dispensadas pelo mercado porque “são mães e não vão dar a performance esperada” e por aí vai.

Então, fui empreender e fomentar de empoderamento feminino, e mais uma vez, lá estava eu sozinha. Todos esses questionamentos continuavam ali: quando a gente fala de feminismo, empreendedorismo, contemplamos somente mulheres brancas? Nesses espaços tão elitizados, onde eu estava, a linguagem ainda era essa: para mulher, branca, empreendedora. Mulher essa que já tinha experimentado o mercado corporativo, acendeu, mas não mais lhe interessa e começa a pensar em empreendedorismo.

Em 2019 tive esse insight em um evento, tive que me levantar e questionar “quanto tempo mais vamos ter que esperar para alcançar essa equidade que tanto sonhamos? Olha para mim e a plateia”. Havia acho que mais 3 mulheres negras, de resto eram todas mulheres brancas falando para mulheres brancas.

A partir daí comecei a trabalhar com fomentos de desenvolvimento de mulheres em tecnologia com recorte racial. Temos um cenário onde não existe representatividade de mulheres e homens negros, a representatividade ainda é muita baixa. Tecnologia é um ambiente muito exclusivo ainda e venho fazendo esse movimento de trazer mais mulheres para a tecnologia.

Enquanto a tecnologia estiver nesse lugar de privilégios, ela ainda será segregadora, não vamos conseguir mudar o cenário. Os algoritmos de hoje até influenciam os casos do judiciário. A tecnologia pode ser um forte aliado para combater essas violências e além disso, para fortalecer esse ambiente de injustiças e desigualdades se nós, pessoas pretas, não estarmos imersos na tecnologia.

Como unir tecnologia, empreendedorismo e as causas do movimento negro? Dessa cruzamento, como você acredita que essas ferramentas podem ser úteis?

Não há como pensar na melhoria da vida da população preta pensando em trabalho só, empreendedorismo de sobrevivência existe desde maio de 1800 e tanto. Não precisamos de pessoas pensando exclusivamente na nossa sobrevivência, ou instituições de caridade pensando que vão ajudar com aquilo que elas acham que precisam, e novamente o negro é colocado nesse lugar de assistencialismo.

Precisamos estar nesse lugar onde as decisões acontecem e isso inclui não só a questão da  tecnologia, mas política, alta liderança de empresas, etc, coisas que precisam ser levadas quando falamos da ascensão de pessoas pretas no Brasil.

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Como atrair e fazer com que essa empresas invistam na causa de vocês?

Essas empresas que nos procuram já tem esse fit, muitas fazem dentro da organização esse trabalho de melhorar o espaço e torná-lo mais diverso. Quando falamos sobre desenvolvimento sustentável, começaram a entender que quanto mais diverso for meu corpo funcional, mais chances de inovação eu terei.

Essa questão de inovar é ter um aliado dentro da empresa. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que é mais fácil ensinar inglês para um jovem da classe C do que para um cara de Harvard entender como pensa a classe C. Então, há mais chances de você ter uma visão diferente.

Quais transformações você vê como essenciais para a maior presença de negros em cargos, principalmente na alta liderança?

Primeira coisa que lembro é que diversidade é um termo e estamos falando de pessoas. Uma das coisas que as empresas precisam entender é que não adianta atrair um candidato negro, mulher ou LGBT+, se o seu ambiente ainda é hostil. Não adianta também que do nada a pessoa se desenvolva e trace uma carreira.

É interessante que a pessoa preta que entrou como aprendiz, tenha um mapa de progresso de carreira, vire estagiário, júnior e continue ascendendo. É necessário de que as empresas tenham essa responsabilidade de formar executivos e traçar carreiras, que o estagiário quiçá se torne o executivo nessa empresa.

Quais iniciativas ou projetos você tem visto ou participado que acredita que são ótimas ideias/soluções para o aumenta de diversidade racial no mercado de trabalho?

Vou puxar a brasa pra minha sardinha. O educacion recruiting olho como uma boa sacada, a empresa terá que abrir mão ao querer fazer uma seleção com recorte racial. Não há como atrair pessoas pretas formadas exatamente nas instituições que você quer e com inglês fluente.

Primeiro, a população que fala inglês é uma minoria, então é natural que as classes que foram historicamente minorizadas, você não vai encontrar muitos deles que falam inglês. Além de que isso não contempla as classes que foram minorizadas por muito tempo. Então, se eu prefiro avaliar os aspectos comportamentais do que hard skills, isso nós conseguimos resolver.

Algumas empresas já têm esse olhar e de fato, é mais fácil que elas aprendam um software ou uma língua, do que ensiná-las de que ela precisa ter empatia ou ter respeito pelo outro. É uma iniciativa que vejo com bons olhos. Não só é a Share RH que está envolvida nesse tipo de programa, outras instituições também. Esse fomento de empresas que se envolvem dessa maneira, mesmo sabendo que não serão todos contratados os funcionários que participaram do treinamento, podem continuar ascendendo na carreira ou podem ser aproveitados por outras empresa. Acaba virando uma corrente.

Então, eu acredito que é um bom movimento e até 2024, sabemos que a demanda por pessoas de tecnologia será de 420 mil pessoas, e há uma dificuldade de atrair esse profissionais. É um caminho interessante que estou ajudando trilhar, ademais de outras que ajudam na base. Tecnologia não é só Tik Tok, é possível fazer muitas coisas, ensinar as pessoas a pensarem tecnologia e não só consumirem.

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Percebi que no seu LinkedIn, você colocou como experiência “Mãe”. Por que você fez isso?

Eu passei muito tempo sendo questionada o que estava fazendo da vida durante 4 anos. Eu acredito que você não separa mais sua vida pessoal da profissional, uma das coisas que a maternidade me trouxe foi ter um olhar mais corajoso para o mercado de trabalho e para a vida em modo geral.

Não vou esconder meus filhos porque já passei por esses violências de “o que você vai fazer com seus filhos?”, não vou colocar debaixo do tapete. Especialmente agora nesse contexto de pandemia, é interessante que foi uma revelação para muitas coisas. Fazer com que as pessoas enxergassem que por trás de cada profissional, há um ser humano que tem pet, filho, marido, pai ou mãe para cuidar.

Existe um cenário que engloba essa pessoa além do que entrega como profissional e essa ação de trabalhar de casa – a casa se torna escritório – foi importante porque as empresas começaram a enxergar que há pessoas por trás de cada resultado. Para mim isso é consolador, espero que daqui pra frente tenhamos esse olhar mais humano e não tenhamos que esconder os filhos.

Como conselho para pessoas pretas que buscam empreender, como conseguir financiamento e onde buscar?

Tem que começar pelas redes de preto, já existem algumas como a Black Bank, a conta Black, o movimento MBM, tem a ReAfro (Rede Brasil Afroempreendedor) – organização que apoia e fomenta empreendedorismo negro.

No fim das contas, um empreendedor negro tem muitas mais chances de ter um crédito negado do que um empreendedor não negro. Então se o sistema como é constituído foi pensado para pessoas brancas, nós precisamos criar nossos próprios ecossistemas. Comece a conversar com os seus e ver o que se consegue em matéria de crédito, tecnologia e apoio da comunidade preta.

Se a gente consome por ano quase 3 trilhões no Brasil, quer dizer que temos muito dinheiro. se nós nos unirmos, a gente forma um país! E se esse dinheiro circulasse entre nós, como seria a nossa realidade? Eu penso que é por aí, ou deve ser a postura de alguém que quer começar a empreendedor, pois sabemos que as chances de sofrer boicotes são grandes.

Sobre os parceiros, quais são os esforços para continuar mantendo também esse tipo de apoio?

É uma questão de valores, se você abraçou uma causa e acredita nela, espera-se que a pessoa prossiga. A esperança é que cada qual continuem com seus objetivos de apoiar. Mas a solução ainda é essa, que a comunidade preta se fortaleça cada dia mais e com a consciência que uma hora isso pode acontecer, mas se houver esse comprometimento das instituições em apoiar de maneira inequívoca a causa, as chances de construir essa relação é sem dúvidas nenhuma muito reais. E com isso, nem tenhamos que esperar 150 anos para promover essa transformação, ela pode começar agora.

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A Factorial agradece a participação da Fabrícia aqui no blog e lhe deseja muito sucesso :)

Fabricia de Souza Garcia –  Graduada em Gestão da Tecnologia da Informação pela Universidade Estácio de Sá. Estudou na Fundação Dom Cabral no Programa de Capacitação do Resultado, focado na gestão eficiente de custos, processos, motivação de equipes e resultados. Mãe Empreendedora no segmento de tecnologia e inovação. Ativista fomentando a inclusão de mulheres e meninas negras nas áreas de tecnologia. Líder do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo Campinas. Estudante de Big Data e Business Analytics na Fundação Instituto de Administração (FIA). Colaboradora  em pesquisas do processo de formação dos ecossistemas de inovação e os processos de exclusão  por meio de inteligência artificial  e algoritmos discriminatórios.

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